Se aceitarmos que a competição entre a ordem liberal e a ordem “socialista” constituía o elemento nuclear da competição bipolar durante a Guerra-fria, também aceitamos que, em termos históricos, o modelo liberal triunfou. Por isso mesmo, grande parte da agenda internacional passou a ser dominada por questões como o alargamento e aprofundamento da União Europeia e da Aliança Atlântica, o reforço do papel das Nações Unidas na segurança internacional, e os processos de reforma política e económica no interior da Rússia e da República Popular da China. Por outras palavras, a questão central dos anos 90 prendia-se com a construção de uma ordem liberal global. Após os acontecimentos de 11 de Setembro, a agenda de alargamento da ordem liberal passou para segundo plano (embora isto não signifique que tenha deixado de ser relevante). Neste momento, a chamada “guerra global” (ou “conflito global”) domina a atenção de quase todos, desde os analistas das relações internacionais até aos governos das grandes potências, em particular as potências ocidentais.
A contestação à Ordem Liberal
Ainda que dentro do próprio Ocidente, algumas reacções são claramente observáveis, a verdadeira contestação ao modelo liberal proposto pelas sociedades capitalistas, parte dos países islâmicos, sobretudo do Irão controlado pelos Ayatollahs. Efectivamente, em termos ideológicos, os antecedentes da origem do actual conflito global podem ser identificados com a Revolução iraniana de 1979. O regime dos Ayatollahs foi o primeiro movimento fundamentalista islâmico com significado político. Após a revolução, a República Islâmica do Irão apoiou grande parte da sua actividade política numa dupla mensagem ideológica. Por um lado, defendia a necessidade de unir a comunidade islâmica, o que seria alcançado através de revoluções políticas; e, por outro lado, apelava à resistência ao imperialismo ocidental. Estas duas ideias ocupam igualmente um lugar central no discurso do movimento pan-islâmico do início do século XXI.
No discurso político do movimento radical islâmico, os ataques ao imperialismo ocidental, e à ordem internacional liberal, ocorrem em dois níveis distintos. Em primeiro lugar, os movimentos islâmicos atacam sistematicamente a política externa norte americana no Médio Oriente, nomeadamente o seu apoio a Israel, e a manutenção das sanções económicas e dos bombardeamentos aéreos ao Iraque. Parece-me, no entanto, que o segundo nível é politicamente o mais significativo. A este nível, os movimentos pan-islâmicos não atacam políticas, mas sim princípios e valores. Ou seja, observa-se um ataque aos princípios e valores da ordem política liberal e secular. Aqui, o confronto com o percurso da História aparece inevitavelmente.
A unidade da comunidade islâmica exige acima de tudo que se façam revoluções nos países islâmicos. A principal finalidade dos movimentos islâmicos radicais é precisamente conquistar o poder nos países muçulmanos, o que reforça a natureza pan-islâmica destes movimentos. Não deixa de ser revelador que as últimas revoluções políticas ocorridas em países islâmicos puseram movimentos radicais no poder. Em 1979, no Irão; e em 1996, no Afeganistão. O modo como os Taliban subiram ao poder no Afeganistão é um bom exemplo do funcionamento do pan-islamismo. A sua formação ideológica deu-se nas escolas corânicas do Paquistão, as “madrassas”. Em 1994, os estudantes de teologia formaram um movimento político, iniciando ao mesmo tempo a sua preparação militar, aperfeiçoada com a participação na guerra entre as forças islâmicas e o exército indiano na Caxemira. No mesmo ano, com a ajuda do Paquistão, iniciaram a conquista do poder no Afeganistão. A revolução culminou com a captura de Cabul em 1996, estabelecendo-se então um “Emirado Islâmico”, liderado pelo Mullah Mohammed Omar. Desde então, grande parte da força militar do Emirado Islâmico do Afeganistão resulta da presença de movimentos militares islâmicos de carácter internacionalista, compostos por árabes, paquistaneses, chechenos, uzbeques e mesmo europeus, e liderados pela Al-Qaeda.
Reduzir esta organização a uma mera associação de malfeitores e de terroristas pode revelar-se um erro grave para a civilização Ocidental. Osama bin Laden ultrapassa o rótulo de bandido com que o Ocidente liberal, chauvinista, imperialista, e porque não dizê-lo, terrorista trata as diferenças culturais.
Serão os árabes de uma forma geral os terroristas que apregoamos, ou ao invés, são o último reduto do combate a um mundo ocidental que cada vez mais se assume como o criador de pobres, miséria, fome e desigualdades?
Serão os islâmicos povos incultos, aberrantes, terroristas, apenas porque a sua cultura é diversa da nossa? – Não creio!
A cultura islâmica e o Império Muçulmano no ano 1000
Oriunda de uma região desértica habitada principalmente por tribos nómadas que se deslocavam em grandes caravanas entre os poucos centros de comércio existentes, floresce aquilo que viremos a denominar como a cultura islâmica. Neste contexto surge a figura de Maomé, o criador da religião islâmica (ou religião muçulmana) no início do século VII da era cristã.
Maomé não foi apenas líder religioso, mas também grande chefe guerreiro que submeteu ao seu governo toda a Península Arábica. Os seus sucessores empreenderam muitas guerras de conquista, ampliando a área de influência do islamismo e estabelecendo um grande império que, um século depois da morte de Maomé, atingia, a leste, a região do rio Indo e, a oeste, o norte da África e a Península Ibérica.
Os árabes não foram apenas guerreiros. Ao contrário, tiveram um papel importantíssimo no campo da cultura e da ciência, especialmente na Matemática. A grande extensão do Império Islâmico permitiu aos estudiosos árabes entrar em contacto com as mais variadas culturas.
Os seus sábios estudaram e traduziram as obras dos filósofos e matemáticos gregos, preservadas na célebre biblioteca de Alexandria, no Egipto. Não fossem as traduções para o árabe, essas obras teriam sido perdidas para sempre com a destruição daquela biblioteca, no final do século VII.
No extremo oriental do seu império, os árabes entraram em contacto com a cultura hindu e interessaram-se especialmente pela astronomia, a aritmética e a álgebra, muito desenvolvidas naquela civilização. Estudaram sobretudo o sistema numérico hindu, reconhecendo sua simplicidade e praticidade. Esses conhecimentos já eram dominados pelos hindus há vários séculos, mas não se haviam difundido entre os povos do ocidente.
Os árabes, que haviam penetrado na Europa e dominavam a Península Ibérica, foram os introdutores da ciência oriental na Europa medieval. Entre os séculos VIII e XIII, por sua iniciativa, foram criadas muitas universidades e bibliotecas, desde Bagdad, no Oriente Médio, até Granada e Córdoba, na actual Espanha. Nesses centros, as obras dos hindus foram traduzidas para o árabe e difundidas entre os estudiosos.
Entretanto, na Europa Medieval houve grande resistência à introdução do saber oriental, sobretudo ao sistema de numeração hindu e à maneira de realizar as operações nesse sistema. Estabeleceu-se um conflito entre os partidários do velho ábaco, herança dos romanos, e os que reconheciam as vantagens do método hindu. Esse confronto ficou conhecido como a contenda entre "abacistas" e "algoristas", e terminou com a vitória final destes últimos, já em pleno Renascimento.
Curiosidade: "al-Khowarizmi" virou "algarismo"
É curiosa a origem da palavra algarismo. Durante o reinado do califa al-Mamun, no século IX, viveu um matemático e astrónomo árabe, que se tornou famoso. Chamava-se Mohammed ibm-Musa al-Khowarizmi que escreveu vários livros, um deles, intitulado "Sobre a arte hindu de calcular", onde explicava minuciosamente o sistema de numeração hindu. Na Europa, este livro foi traduzido para o latim e passou a ser muito consultado por aqueles que queriam aprender a nova numeração. Apesar de al-Khowarizmi, honestamente, explicar que a origem daquelas ideias era hindu, a nova numeração tornou-se conhecida como a de al-Khowarizmi. Com o tempo, o nome do matemático árabe foi modificado para algorismi que, na língua portuguesa, acabou como algarismo.
Numa próxima oportunidade abordarei os elementos culturais árabes, que se estendem da pintura, à escultura, à poesia, todas elas possuidoras de profunda harmonia.
Em lugar de os condenarmos sumariamente, tentemos conhecê-los; de certeza que para muitos será uma agradável surpresa, e de certeza que um outro olhar será lançado sobre uma cultura multimilenar e berço da actual civilização Ocidental.