segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

Breves reflexões


A implosão espectacular da esquerda, cujo inicio podemos situar – ou pelo menos época em que se agudizou – com o fim do ciclo “União Soviética” e que marcará por muito tempo a crise que se vive neste lado do espectro político, não se deve somente à corrupção generalizada que caracterizou muitos dos sistemas a Leste – aliás, bem marginal, nos dois sentidos –, mas à incapacidade da esquerda em se enquadrar nos novos tempos. Cristalizada e presa de dogmas inultrapassáveis – bem ao jeito da Igreja católica –, vê-se confrontada com o seu próprio fim – perdida na hecatombe do desmoronamento da era soviética – se não forem encontradas soluções imaginativas, bem de acordo com o tempo e a contemporaneidade. Os partidos da esquerda tradicional, fechados sobre si mesmos foram-se tornando partidos deles próprios, e de uma classe envelhecida e de olhar obtuso, girando em falso, como todas as burocracias, na medida em que as suas bases sociais foram derretendo ao sol da reestruturação produtiva do capitalismo.
A classe operária – antes a base de apoio – perdeu o poder de veto, e na verdade desapareceu para dar lugar a uma classe média baixa, mas, que apesar de tudo, começa a ter acesso a bens de consumo impensáveis ainda não há muito tempo.
A burguesia política e a burguesia económica conspiram livremente em conjunto com o grande capital, com o intuito óbvio de provarem a incompetência do povo pobre em criar partidos de massas por conta própria, em organizar-se como classe através da sua luta emancipatória.
É o fim de linha da corrosão conjunta das classes fundamentais, gravitando por intermédio dos seus respectivos aparelhos partidários em torno de um Estado concentrado na tarefa exclusiva de extorquir a riqueza produzida, paradoxalmente por uma sociedade assustadoramente empobrecida e, por isso mesmo, controlada por políticas focalizadas de administração das suas zonas de vulnerabilidade e risco.
Quem acompanhou com a devida atenção as grandes implosões – entre outras, o abandono dos pobres de New Orleans –, ou os subúrbios incendiários franceses ardendo durante semanas, talvez encontre matéria para reflexão e comparação. As novas segregações espaciais, ocupacionais e raciais que retalharam as conturbações ingovernáveis de hoje não encontram eco na dita classe operária e muito menos nos partidos que se assumem de esquerda; na insurreição dos operários parisienses em 1848, as revoltas de classe giravam em torno do espaço de trabalho. No entanto, a rebelião actual das periferias francesas, onde se acumulam desemprego, racismo e desespero, veio confirmar a percepção de que a cidade definitivamente conflagrada passou a desempenhar o papel detonador antes reservado às fábricas.

Uma liderança clássica do marxismo revolucionário, lembrando que a revolta dos subúrbios se apresenta numa ordem dispersa de violência, recomeçada do mesmo ponto noite após noite, tem que admitir que noutros tempos o movimento operário seria uma alternativa a essas explosões de fúria social. Só que hoje, e não por acaso, entra calado e sai mudo de toda a crise, com o estado de emergência decretado e tudo.
Por cá assistimos a fenómenos semelhantes a que não damos – ou não queremos dar – importância. Nas grandes urbes assiste-se à degradação das condições de vida – de resto extensível a todo o país com especial incidência nas zonas interiores já habituadas ao esquecimento e à miséria –, e ao crescer óbvio mas inevitável da criminalidade – “casa onde não há pão…” – combatida com medidas repressivas, em lugar de políticas de fundo que alterem as razões do descontentamento, medidas essas que semeiam a revolta, em lugar de procurar as causas e combatê-las; é neste cenário que a esquerda se mostra incapaz de se adaptar aos tempos, articulando a dialéctica ao novo status quo.

Interessante verificar o que se passa nalguns países latino-americanos, mormente na Venezuela onde Chávez não se assume como marxista, se confessa leitor compulsivo de Mao, mas recusa um e outro modelo, preferindo antes uma revolução pacífica e democrática tal como nós entendemos o termo.
O que temos então? Uma esquerda esclerosada, perdida nos dogmas de que não consegue afastar-se, arrastando na sua queda os mais desfavorecidos, com a conivência do sindicalismo, também ele a sofrer de doença incurável?
Repensar a esquerda como alternativa aos modelos neo-liberais torna-se, pois, uma necessidade inquestionável; mas tal só será possível com uma profundíssima reflexão e com o afastamento dos velhos lideres, presos algures num buraco do tempo.
A esquerda é humanista, ou devia ser, e não pode, nem deve sucumbir à avalanche descontrolada da burguesia emergente e do capitalismo selvagem sem preocupações sociais, para quem o homem não passa de uma mera peça na engrenagem maior da máquina do lucro.