segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

Kosovo, as contradições


Para os sérvios, o Kosovo tem origem no núcleo territorial controlado a partir do século XII pela dinastia principesca dos Nemanjic. O filho mais novo do fundador da dinastia, monge do monte Atos com o nome de Sava, estabeleceu a autonomia da Igreja sérvia, reconhecida em 1219. O Kosovo encontrava-se também no centro de gravidade do Império do czar Dusan, proclamado em 1346. Alguns dos maiores mosteiros sérvios ortodoxos encontram-se no Kosovo, tais como o de Visoki Decani ou o de Gracanica. E na cidade de Pec está instalada a sede da Igreja sérvia ortodoxa. O patriarca de Pec simboliza a autocefalia – ou seja, a independência eclesiástica – da ortodoxia sérvia. O patriarca, mesmo que resida em Belgrado, continua a arvorar o título de «patriarca de Pec», sendo-lhe simbolicamente atribuídos no Kosovo o seu cargo e respectivas funções.

Com a batalha de Junho de 1389, o Kosovo simboliza também o desaparecimento político da nação sérvia. Lembram os historiadores que o resultado dessa batalha não foi decisivo, porque a vitória turca de Marica, em 1371, já tinha aberto as portas dos Balcãs aos conquistadores otomanos. Por outro lado, em 1389 o príncipe sérvio Lazar Hrebeljanovic comandava um exército onde se encontravam destacamentos de todos os povos cristãos dos Balcãs, como os bósnios do rei Tvrtko, não tendo pois o exército do príncipe Lazar um cunho “nacional” sérvio, termo anacrónico na Idade Média.

A batalha do Campo dos Melros (Kosovo Polje) passou rapidamente a ocupar um lugar muito importante no imaginário nacional sérvio, com canções populares celebrando as proezas dos heróis dessa batalha, segundo o modelo das canções de gesta da Idade Média ocidental.

Mas a passagem desta memória religiosa e popular da batalha à afirmação duma reivindicação política sérvia do Kosovo só se deu no século XIX. A partir dos anos de 1850, o principado sérvio, autónomo desde 1830, procurou estender-se para o sul, orientação estratégica definida pelo ministro Ilija Garasanin, o “Bismarck sérvio”, no seu famoso Esboço (Nacertanje). Com efeito, o império dos Habsburgos bloqueava no Norte e no Oeste as perspectivas de expansão da Sérvia, ao passo que nos territórios ainda sob domínio turco lavravam repetidas revoltas e contestações nacionais cada vez mais virulentas.
O nacionalismo sérvio do século XIX irá pois apoiar-se na tradição literária e religiosa relativa ao Kosovo para justificar as suas reivindicações políticas, sendo assim o mito transformado em reivindicação territorial pelo nacionalismo moderno. O quinto centenário da batalha de Kosovo Polje, comemorado em 1889, foi a ocasião escolhida para afirmar este novo estatuto político do Kosovo. Ao passo que o mito era até então celebrado pela Igreja ortodoxa, nomeadamente devido à opção mística do príncipe Lazar, na sua reescrita esta limitou-se a ter um papel marginal. É certo que a Igreja sérvia, privada do seu centro de Pec desde a supressão do patriarca em 1776, e tendo-se por isso retirado para Sremski Karlovci, na Voivodina, então território austríaco, esteve pouco implicada na emergência moderna do Estado sérvio.

História recente

A poucos quilómetros de Pristina, capital do Kosovo, encontram-se frente a frente dois memoriais. Uma torre celebra a batalha de Kosovo Polje, perdida, face ao invasor turco, no dia 28 de Junho de 1389 por uma coligação de povos cristãos dos Balcãs, chefiada pelo príncipe sérvio Lazar Hrebeljanovic. Foi no local onde ocorreu essa batalha, no lugar chamado Gazimestan, que Slobodan Milosevic pronunciou, a 28 de Junho de 1989, o seu discurso de reabilitação do nacionalismo sérvio, assinando ipso facto a morte da Jugoslávia perante quase um milhão de sérvios.



Dez anos mais tarde, a 28 de Junho de 1999, monsenhor Pavle, patriarca da Igreja ortodoxa sérvia, celebrou neste mesmo lugar, perante um punhado de fiéis, o apelo (ofício dos defuntos) em memória do príncipe Lazar, sob apertada protecção dos militares da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) que tinham acabado de penetrar no Kosovo.

Perto dali ergue-se a turbe, túmulo do sultão Murad, o outro protagonista da batalha de 1389. Este belo edifício, que um jardinzinho rodeia, é o tradicional lugar de devoção dos muçulmanos do Kosovo. Desde há séculos, a função de turbetar (guarda do túmulo) é transmitida de pai para filho na mesma família, de origem turca. O último turbetar faleceu em 2001, sendo agora a sua viúva que assume esse cargo. Esta mulher é bósnia, eslava muçulmana do Sandjak de Novi Pazar. Apesar de ter contraído matrimónio com um turco do Kosovo, nunca aprendeu a língua albanesa e não esconde a animosidade que tem pelos “shiptari”, nome que os sérvios e outros eslavos do Sul dão, com desprezo, aos albaneses. No interior da turbe, uma árvore genealógica expõe a linhagem dos sultões osmanlitas. A turbe é pois uma espécie de monumento relíquia de um Estado há muito desaparecido, o Império Otomano.
Seis anos depois dos bombardeamentos executados pela OTAN na Primavera de 1999, o Kosovo continua a ser o principal centro de tensões dos Balcãs. Os bloqueios políticos remetem para diferentes interpretações da sua história, situando-se o Kosovo na encruzilhada das memórias antagonistas dos Balcãs, a memória sérvia e a memória albanesa, mas também as de todos os impérios e de todos os povos que ali se cruzaram.

A unificação de Tito



Em princípio, as posições de uns e outros são inconciliáveis. Os albaneses só querem ouvir falar de independência, que para os sérvios é uma perspectiva inaceitável. Com efeito, o lugar que o Kosovo ocupa, desde há mais de um século, nos imaginários nacionais destes dois povos, é em grande medida sobredimensionado.

O movimento plurinacional dos partidários comunistas do marechal Tito só tardiamente se desenvolveu no Kosovo; na Segunda Guerra Mundial foram sobretudo os tchetniks (ultranacionalistas sérvios) que se opuseram às forças de ocupação e aos seus colaboradores albaneses.
Por conseguinte, os períodos de dominação de um povo pelo outro alternam-se: predominância sérvia de 1918 a 1941, predominância albanesa de 1941 a 1945, predominância sérvia nos primeiros tempos da Jugoslávia socialista, visto o ministro do Interior, o sérvio Aleksandar Rankovic, ter executado uma política centralizadora muito suspeitosa para com qualquer manifestação susceptível de apoiar o reemergir do nacionalismo albanês. A queda de Rankovic (1965), e sobretudo a nova Constituição jugoslava descentralizadora de 1974 voltaram a dar vantagem aos albaneses. Entre 1974 e 1981, o Kosovo passou por uma “idade de ouro”, sob a direcção de quadros comunistas locais, na sua grande maioria albaneses.

Reivindicações suportadas pelo imperialismo americano e pela submissão europeia

No entanto, o desenvolvimento das reivindicações nacionais albanesas acabou rapidamente por pôr em causa esse frágil equilíbrio. As manifestações albanesas de 1981, violentamente reprimidas, visavam elevar o Kosovo ao nível de república federada da Jugoslávia, e as duas orientações políticas desenvolveram-se a partir desse momento fundador. Ao mesmo tempo que os professores da Universidade de Pristina, criada em 1968 e centro do renascimento nacional, afirmavam a identidade específica do Kosovo, os seus alunos aderiam aos movimentos clandestinos que preconizavam a “Grande Albânia”, controlados pela Albânia estalinista de Enver Hoxha. Na década de 1990, destes movimentos, muito implantados na diáspora albanesa da Europa Ocidental, nasceu o UCK.
Da supressão da autonomia, em 1989, ao ano de 1999, o regime sérvio de Slobodan Milosevic fez pesar sobre o Kosovo uma mão de ferro. Mas a estratégia por que optaram os dirigentes albaneses, congregados na Liga Democrática do Kosovo (LDK) de Ibrahim Rugova, a “resistência não violenta passiva”, teve como resultado a edificação de uma contra­sociedade, sem dúvida respondendo à violência de Belgrado, mas que também comprometeu a possibilidade duma futura reconciliação.
Essa criação duma contra-sociedade albanesa foi acompanhada por uma intensa propaganda no estrangeiro, visando comparar o estatuto do Kosovo com uma situação colonial, em que a população “indígena” (albanesa) teria sido oprimida por um poder estrangeiro. Nesta perspectiva, não faltaram as abordagens demográficas, explicando­se correntemente que mais de 90 por cento dos habitantes do Kosovo eram albaneses, quando os números do último recenseamento efectuado (1981) apenas indicavam 81 por cento.
Os historiadores sérvios teorizaram os direitos específicos do seu povo opondo os direitos “históricos” da Sérvia aos “direitos demográficos” dos albaneses, nitidamente maioritários, pelo menos desde meados do século XX. Entre os sérvios e entre os albaneses, os manuais escolares contribuem grandemente para reproduzir e fortificar estas contraditórias interpretações do passado. Nos grandes reveses do protectorado internacional do Kosovo dever­se-á seguramente incluir a ausência de qualquer reforma efectiva dos conteúdos dos programas escolares, bem como de qualquer iniciativa visando levar as diversas comunidades a ultrapassar as suas projecções identitárias antagonistas.

A ingerência Ocidental



O objectivo oficial dos bombardeamentos efectuados pela OTAN na Primavera de 1999 consistiu em fazer cessar as violências do exército e da polícia sérvios, as quais por sua vez respondiam ao desenvolvimento da guerrilha albanesa. Mas os albaneses viram na acção da Aliança Atlântica um apoio à sua reivindicação de independência e receberam os soldados da OTAN como “libertadores”; estes últimos nada fizeram para impedir a “correspondente limpeza étnica” de que foram vítimas os sérvios e as outras comunidades não albanesas. Na realidade, as forças ocidentais utilizaram as reivindicações albanesas para justificar os seus próprios objectivos, que consistiam, entre outras coisas, em enfraquecer o regime sérvio de Milosevic.
Terão agora os sérvios “perdido” o Kosovo? No caso de a comunidade internacional se empenhar com vista a um reconhecimento da independência do Kosovo, será muito provável um novo êxodo dos cerca de 100.000 sérvios que continuam a viver naquilo a que não podemos deixar de chamar um “protectorado internacional”.
Optando por privilegiar e, por isso mesmo, por legitimar um discurso nacional, a comunidade internacional tem uma responsabilidade esmagadora, na medida em que ela própria desprezou os valores que proclama, os de uma sociedade aberta e tolerante. Ao favorecer a emergência de um Kosovo exclusivamente albanês, reconhecendo formalmente a sua independência, a comunidade internacional colocou-­se ainda por cima numa terrível armadilha, que bem pode estender-se a todas as populações do Kosovo e arrastar a região para uma nova espiral de violência.
Torna-se, pois evidente, que a “independência” do Kosovo foi um claro roubo da Europa dos 27, auxiliando e alimentando os sonhos de um louco que por ora, ainda governa os EUA (Estados Unidos da América); é ainda mais evidente que será a EU (União Europeia) a financiar o “novo estado”, um estado tão inviável quanto o de Timor-leste que, como agora podemos verificar, é um foco de instabilidade e de lutas por um poder inexistente, homens (?) que fazem os jogos das potências que querem a todo o custo o petróleo, figuras submissas e abjectas – leia-se Xanana Gusmão e Ramos-Horta –, fantoches nas mãos de suseranos, aplicando leis que servem apenas e só os ocupantes e os vis servidores.



A “independência” do Kosovo, a ser aceite pelo mundo ocidental, abre um perigoso precedente deixando no ar uma série de perguntas: se o Kosovo pode ser “independente”, porque não aplicar o mesmo estatuto ao norte de Itália, ou ao país basco, ou aos independentistas catalães?
Não seria moralmente justo? – Lembro que estes têm de facto razões culturais e históricas para aspirarem à independência. -

Ler as opiniões do Samuel,e do Pasquim do Povo sobre este assunto.