terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Repositorium (O Manifesto de Malevich)


A “retirada” estratégica dos McCann assemelha-se em tudo ao Manifesto Suprematista de Malevich a que nem sequer falta a retórica inflamada e a automistificação; em jeito de contraponto, o modesto panfleto preparado por Vladimir Tatlin – leia-se sistema judicial português – repleto de autocomiseração, e porque não admiti-lo, carregado de um perturbador sentimento de frustração e de imagens em contra-relevo a perpassarem nas televisões de todo o mundo ocidental nada dignificantes para a imagem de Portugal.
O contraste é óbvio: enquanto que a fuga em directo – e tratamento VIP – foi claramente marcada pela exuberância, bem ao jeito de Malevich, e ainda pelo carisma e pelo espírito profundamente místico do casal em fuga, os portugueses assistiram incrédulos e impotentes ao circo mediático montado em torno da “estratégica” retirada; poder-se-á afirmar que existe algo de Tatliano nos sentimentos de quem investiga o caso do desaparecimento da pequena Maddie; sentimentos que resultam do experimentalismo filosófico, da permissividade da Lei, mas sobretudo da clara ingerência – ininteligível para todos nós – de uma série de órgãos que regulam e asfixiam o trabalho da Polícia Judiciária. Não é aceitável que o Ministério Público, a Tutela – e mais grave ainda –, que interesses manifestamente políticos sublinhados por uma claríssima ingerência – permitida, diga-se – dos ingleses no processo obviasse a um desfecho destes. Estamos ante o conceito do construtivismo abstracto defendido por Tatlin que nos faz regredir ao início do século XX.

É interessante observarmos a analogia da motivação conceptual da vertente modernista de Tatlin – em 1914/1915 – e a fuga em directo do casal McCann: nos dois casos foram usados fragmentos do mundo real – pedaços de jornais, papel de parede granulado e tosco, colheres, câmaras de televisão e demais objectos e conceitos do quotidiano para complementarem a tela inundada de pinceladas com motivações abstractas, muitas vezes incompreensíveis, a pedirem uma imaginação fertilíssima para que reinterpretemos o tema da composição. É justamente nesta reinterpretação que reside o perigo de podermos pensar que a justiça tem pratos diferentes para delitos iguais e que a aplicação da Lei é directamente proporcional à conta bancária de cada um e/ou ao estatuto social a que se pertence.
A ser verdadeiro este paradigma, estamos a cair na metodologia criativa – que na arte faz sentido, mas que se transportado para a justiça é claramente um caminho perigoso – de Friedrich Vordemberg-Gildewart, que não atribuía títulos às suas obras, numerando-as apenas de forma indiscriminada, mas com a ideia sempre presente de que cada uma delas constituía uma rubrica de um programa potencialmente interminável, resumindo-a afinal a uma forma de expor um ou muitos pontos de vista. São claramente movimentos diagonais a que se acrescentam elementos de relevo numa tentativa despropositada de dar forma a uma concepção puramente abstracta. A Justiça e sobretudo a investigação não se podem reger por estes parâmetros. Porque lhes falta equidade, objectividade, clarividência e se constituem eles mesmos numa infinidade de paradigmas.

Os portugueses têm sido sovados, maltratados, humilhados pelos discursos racistas da imprensa inglesa, o trabalho da polícia condicionado e a justiça posta em causa; ao permitir que o casal McCann – principais suspeitos do desaparecimento da filha, é preciso não o esquecer – a justiça portuguesa perdeu uma ocasião única de repor alguma verdade em todo este processo.
Não acuso o casal de ter cometido o crime. Não posso fazê-lo porque não o sei. Mas sei que em circunstâncias idênticas outras pessoas foram privadas da sua liberdade num ápice.

Prevalece claramente o Manifesto de Malevich em toda esta história de contornos duvidosos.