terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Repositorium (Glacé)

O relógio de parede marca dez e trinta mas não se sabe de que dia, que os ponteiros pararam há muito. Tempo suspenso na paragem da pequena e complexa engrenagem que faz rodar o tempo e completar os ciclos. Aprisionado naqueles dois ponteiros parados, carcereiros e prisioneiros desse tempo que haveriam de contar com voltas ininterruptas, inexorável, decompondo o ínfimo equilíbrio da natureza e reduzindo-o a nada.
Post it: fazer um bolo. Desta vez certificar-me de que as migalhas não ficam aprisionadas na cobertura. Usar o glacé apenas e só após traçar as letras com um palito de maneira a ficarem centradas e deixar as rosetas para o fim.
A impossibilidade de não pensar nesse outro futuro inexistente porque num determinado momento imperou o livre-arbítrio e a escolha – fatal? – foi outra deixará sempre a marca da dúvida: terá sido a felicidade recusada?
Post it: não esquecer de mencionar que Virgínia Wolf meteu uma pedra na algibeira do casaco, entrou no rio e afogou-se.
O halo impreciso de [ti] contém um espasmo quase doloroso, algo mais forte do que a excitação. Pânico. Ocorreu [me] agora a palavra desenhada na cobertura do bolo com um palito e depois coberta com o glacé terá de ser “pânico”, justificando o uso do palito mirrado pelo calor do forno e passado por cima dos pequenos sulcos traçados com o miserável e execrável palito. A cobertura será perfeita.
Não era para saber: passei os dedos repletos de glacé pelos lábios numa atitude definitivamente infantil.
O relógio de parede continua a marcar dez e trinta, esquecido do tempo e dele mesmo. E cheira a bolo queimado e a manhã solarenga; capta-se o risco deixado por um qualquer avião no céu e que se destaca das pequenas nuvens pela intransigência da recta e rumo certo. E incerto.
Por exemplo: se invadisse a [tua] cama no cair da noite rodear [te] – ia o corpo num amplexo formidável, olharia o relógio de parede que continua a marcar dez e trinta e ficaria a certeza de que o tempo havia efectivamente parado.

Sei-te E., esperando [me] desnudada de ti e tempo parado nos ponteiros que teimam em marcar dez e trinta.