segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

Separatismo ou dualismo


Uma das teorias clássicas sobre as relações entre a moral e o direito é a do iluminista Christian Thomasius, para quem o direito tem a ver com a acção humana depois de exteriorizada e a moral diz apenas respeito àquilo que se processa no plano da consciência. Daí as características de bilateralidade e coercibilidade do direito contra a unilateralidade e a incoercibilidade da moral. Por outras palavras, o direito é positivo, bilateral e coercivo, enquanto a moral é negativa, incoercível e unilateral, ou interna.

Ciência positiva e ciência negativa
Neste sentido, enquanto o preceito da moral proclama o faz ao outro aquilo que querias que te fizessem a ti, já o preceito do direito se reduz ao não faças ao outro aquilo que não querias que te fizessem a ti. Isto é, se a moral se assume principalmente como uma ciência positiva, já o direito é uma espécie de ciência negativa.
Segundo as próprias palavras de Thomasius, a moralidade guia as acções internas dos néscios; os usos sociais, as externas, a fim de conquistar a benevolência dos demais; o direito, as externas, a fim de não perturbar a paz ou de restaurá-la, uma vez perturbada. A moral tem a ver com o honestum; os usos sociais, com o decorum; e o direito, com o iustum. O que o homem faz por obrigação interna e seguindo as regras da moralidade e dos usos sociais, é guiado, em geral, pela virtude e por isso, neste caso, se chama ao homem virtuoso e não justo; o que o homem faz de acordo com as regras do direito ou por obrigação externa é guiado pela justiça, e por isso se chama, por razões destas acções, justo.
Esta perspectiva dualista ainda se mantém, por exemplo, num Léon Duguit que ainda considera que a regra do direito se não impõe ao homem interior; é a regra dos seus actos exteriores e não dos seus pensamentos e dos seus desejos, o que, pelo contrário, deve ser toda a regra de moral.
Mas, como assinala Radbruch, a conduta exterior só interessa à moral na medida em que exprime uma conduta interior; a conduta interior só interessa ao direito na medida em que anuncia ou deixa esperar uma conduta exterior. E, tanto a conduta exterior é susceptível de ser objecto de valorações morais, como a interior de ser objecto de valorações jurídicas.



A distinção de Kant

ASCENSÃO AO SUJEITO
KANT parte desta perspectiva separatista ou dualista: a legislação ética (ainda que os deveres possam ser exteriores) é aquela que não pode ser externa. Contudo, em lugar de perspectivar a diferença segundo o objecto, na premissa de que a obrigação coactiva, à maneira de Thomasius, isto é, pelo conteúdo da obrigação ou pela forma de obrigar, ascende ao sujeito, referindo ambas as categorias à liberdade; deste modo, reconhecendo a conexão interna entre a moral e o direito.

A liberdade interna e a liberdade externa

Considera que a moral diz respeito à liberdade interna (o sujeito não se submete a outra norma senão àquela que a si mesmo ditou) e o direito à liberdade externa (a liberdade do sujeito relativamente a outros sujeitos). A liberdade regula a liberdade interior do homem sob a sanção da consciência; o direito apenas regula a liberdade externa.
O imperativo categórico
A lei moral ditada pela razão prática é o imperativo categórico: uma acção é conforme à lei moral se for ditada motivos susceptíveis de se tornarem lei universal. Enquanto a moral se ordena em torno do móbil da acção, já o direito se desinteressa das razões que fazem agir, impondo apenas uma certa atitude exterior – isto é, os actos ou as omissões susceptíveis de serem constatados por outrem.
Legalidade e moralidade
Assim, distingue a legalidade (concordância do acto externo com a lei sem ter em conta o seu móbil), da moralidade ou Sittlichkeit (cumprimento do acto por dever-ser). Nestes termos, proclama que o direito se ocupa da legislação prática externa de uma pessoa a respeito de outra enquanto os seus actos possam, como factos, exercer influência (directa ou indirecta) de uns sobre os outros.

A obrigação e a virtude

Para Kant, o direito e a moral são, assim, guiados pelo mesmo móbil: o interesse comum da humanidade. Mas se o direito traça ao homem a linha da obrigação, que constrange, a moral impõe-lhe a virtude, que aconselha e persuade. Se a moral leva apenas ao que é bem, já o direito conduz ao que é justo.
Também Hegel vai acentuar a dependência do direito e da moral relativamente a uma terceira categoria que as duas hierarquizariam, o ethos, lutando contra o dualismo kantiano.



Um destes dias voltarei ao assunto.