sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

Considerações (vagas) sobre o Direito


Para entendermos a “imunidade” do poder jurídico como guardião do Estado democrático, é de fundamental importância compreender um dos grandes ideólogos da produção do direito moderno: Hans Kelsen. No seu tratado sobre a teoria pura do Direito, Kelsen afirma que o pressuposto da “ciência jurídica” deve manter-se equidistante da sociologia jurídica, uma vez que, nessa esfera de análise, o objecto não é o próprio Direito, mas os fenómenos ou acontecimentos circundantes ao Direito. Kelsen tenta isolar o Direito de qualquer influência dos pressupostos filosóficos ou de sanções ético-morais. A autonomia do Direito tem como objectivo dar sustentação orgânica e burocrática a uma sociedade que tenta a racionalidade e o empirismo dogmático. O pressuposto básico de Kelsen assenta na ideia da norma por excelência, valorizando apenas a ordem jurídica auto-aplicativa, numa clara feição fundamentalista, onde o texto é condutor da própria realidade, acomodando a sociedade na perspectiva da ordem textual-jurídica. A dogmática jurídica deste pensador manifesta-se na medida em que os seus pressupostos teóricos estão fundamentados no conhecimento científico, especialmente no postulado de que é possível fazer separação radical entre sujeito cognoscente e objecto cognoscível, defendendo, ainda, que a ciência jurídica deve fornecer esquemas de interpretação de natureza exclusivamente jurídica dos factos e restringir-se a um juízo de valor objectivo dos mesmos. Ou seja, o Direito busca consolidar-se na estrutura estatal como feixe do universo linguístico peculiar, para muitos, impenetrável e de uma configuração burocrática adaptável às necessidades do Estado.

O processo de “judicialização” do Estado materializa-se na medida em que o Estado, ao ser considerado a única fonte de poder legítimo, recorre exclusivamente à ordem jurídica para a garantia de sua estrutura burocrática e institucional. A segurança do Estado democrático não repousa mais na atitude dialógica entre Estado e sociedade, mas no ordenamento jurídico, imposto como nova fonte da sua conservação. O direito que se configura ao longo do processo civilizacional do ocidente é o direito de defesa do Estado enquanto instituição pretensamente autónoma e imune, e não mais um Estado configurado no ideal democrático, mas “juridisciocrático”. Deve reconhecer-se que esse processo de judicialização do Estado ocorre na razão directamente proporcional ao esvaziamento da participação social na esfera pública, do declínio do homem político e do desencantamento com a política partidária e institucional. A demanda da supremacia da justiça, na aspiração societária, vem do desamparo político e da indiferença burocrática. O Direito passa a revelar-se como última reserva moral numa sociedade que já não a possui. O enfraquecimento do Estado diante da supremacia desproporcional da economia internacional e do espírito global apoderou-se do planeta num flagrante desprezo pelo poder tutelar; multiplica-se assim, a recorrência ao acto jurídico, sabendo todos nós que também a Justiça enferma de maleitas maiores.
Vivemos então num mundo onde apenas o poder do dinheiro conta? O Direito, que deveria assegurar a equidade, é afinal mais um instrumento de opressão? – Estou tentado a dizer que sim.

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